A chuva caía devagar, quase como quem não tem compromisso. Molhava o asfalto, lavava as calçadas, e deixava no ar aquele cheiro de terra molhada que mistura saudade com sossego. Da porta entreaberta da cafeteria da esquina escapava o aroma de café recém-passado, quente, convidativo.
Lia entrou ajeitando o guarda-chuva, sacudiu umas gotas e foi direto pra janela. Tinha esse hábito de observar o vai e vem das pessoas — cada uma com seu rumo, seus pensamentos, seus mistérios. Parecia que a cidade inteira se movia num jogo silencioso, onde ninguém sabia as regras, mas todo mundo jogava.
Enquanto esperava o cappuccino, reparou num homem sentado algumas mesas à frente. Tinha um livro aberto, mas o olhar estava longe, preso na dança da chuva do lado de fora. Parecia carregado de ideias, não de tristeza — só de profundidade.
O garçom chegou com o café e, sem querer, deixou cair um guardanapo. Lia ia se abaixar, mas o homem do livro foi mais rápido. Pegou o papel e entregou com um sorriso discreto.
— Aqui. — Obrigada. — disse ela, notando que os olhos dele tinham um tom castanho que quase puxava pro dourado.
Ele voltou pro lugar, mas não ficou muito tempo. Fechou o livro, se levantou e veio até ela.
— Desculpa a intromissão… mas você parece gostar de olhar a chuva. — E você parece gostar de olhar quem olha a chuva. — respondeu Lia, sem pensar muito, surpresa com a própria resposta.
Ele riu, puxou uma cadeira. — Posso? — Claro.
Sentou-se, colocou o livro sobre a mesa. Lia leu o título: Cartas para um Amor que Nunca Existiu.
— É seu? — É. — disse ele, meio tímido. — Sou escritor. Ou pelo menos tento ser.
Lia arqueou as sobrancelhas. — Então você inventa amores? — Não exatamente. Escrevo sobre os que poderiam ter acontecido. Às vezes é mais fácil falar do que não foi do que do que foi.
A conversa deslizou fácil. Falaram de livros, de músicas que marcaram, de lugares que ainda queriam conhecer. A chuva lá fora engrossava, mas ali dentro parecia que o tempo tinha parado só pra eles.
Quando o relógio marcou seis, Lia se deu conta de que precisava ir. — Foi… inesperado. — O inesperado é o que vale a pena. — ele disse, entregando um cartão com o nome impresso: Daniel Azevedo.
Dois dias depois, Lia ficou encarando a tela do celular por um bom tempo. Escrevia, apagava, tentava de novo. Até que, num impulso quase tímido, mandou: “Se a chuva voltar, podemos tomar outro café?”
A resposta veio tão rápido que ela mal teve tempo de se arrepender: “A previsão diz que chove amanhã. Às 17h?”
O reencontro
A chuva não falhou. Caiu mansa, como se soubesse que tinha um papel a cumprir. Eles se encontraram na mesma cafeteria, sentaram na mesma mesa. Daniel trouxe um caderno, meio gasto nas bordas, e mostrou a Lia alguns trechos do que estava escrevendo.
— Esse personagem aqui… — ela disse, apontando com o dedo — tem um jeito que parece comigo. — Talvez seja. — ele respondeu, sem desviar o olhar. — Ou talvez você seja o começo de algo que ainda não sei como contar.
Lia sentiu o coração dar aquele salto silencioso. — E se fosse pra escrever sobre mim, como seria? — Como alguém que chegou sem pedir licença e mudou o compasso da minha história.
O silêncio que veio depois não foi vazio. Era cheio. Daqueles que dizem tudo sem precisar de palavras.
As semanas seguintes
Eles começaram a se ver com frequência. Às vezes na cafeteria, às vezes caminhando sem rumo pela orla, às vezes só trocando mensagens longas, daquelas que chegam de madrugada e fazem a gente dormir sorrindo.
Daniel tinha uma mania bonita: escrevia frases soltas em guardanapos. Lia começou a guardar cada um, como quem coleciona fragmentos de um livro que ainda não foi publicado, mas já mora dentro dela.
Um dia, ele disse: — Acho que estou escrevendo um livro sobre nós. — E como termina? — ela perguntou, com um sorriso curioso. — Ainda não sei. Vai depender de você.
O conflito
Na oitava semana, o céu abriu. Dias claros, sem sinal de chuva. E junto com o sol, veio a distância. Daniel estava diferente. As mensagens ficaram curtas, os encontros rarearam.
Quando finalmente se viram, Lia foi direta: — O que houve? — Medo. — ele disse, sem rodeios. — Medo de escrever algo tão verdadeiro que, se acabar, eu não consiga mais escrever nada.
Ela respirou fundo, tentando organizar o que sentia. — Então escreve mesmo assim. Porque, se acabar, pelo menos a gente vai ter a história.
O desfecho
Meses depois, o livro saiu. Na dedicatória, uma frase que Lia leu com o coração apertado: “Para Lia, que me ensinou que o inesperado é sempre o capítulo mais bonito.”
Na noite de autógrafos, ela apareceu com um guarda-chuva — mesmo sem sinal de chuva. — Previsão de tempestade? — ele brincou, ao vê-la. — Não. — ela respondeu, sorrindo. — Só quis trazer um lembrete de como tudo começou.
Ele segurou sua mão. E, por um instante, não havia fila, nem flashes, nem vozes ao redor. Só dois personagens que, contra todas as probabilidades, escolheram continuar escrevendo juntos — sem pressa, sem ponto final.
por Silvia Baptista

Comentários
Postar um comentário
Deixe sua mensagem, comentários, perguntas. É muito bom contar com sua participação.